terça-feira, 19 de abril de 2011

O CONCEITO DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA É UM FANTASMA

“A não violência não é uma vestimenta que colocamos e retiramos à vontade. Seu eixo se encontra no coração, e deve ser uma parte inseparável do nosso ser.” (Gandhi).

Existe crime organizado no Brasil? Se imaginarmos o crime organizado como uma atividade empresarial que explora algum tipo de mercado ilícito, a resposta só pode ser positiva: existe. Ou seja, no plano fático (fenomenológico) ele existe. Se olharmos diariamente a mídia, diremos: existe. Vejamos:

“O crime organizado só existe com a participação da Polícia”, disse Cláudio Beato, Folha de S. Paulo de 20.02.11, p. C9. “É impossível ganhar a batalha contra o crime organizado, sem extirpar a corrupção policial” (Veja de 23.02.11, p. 63).

“Edir Macedo é acusado de lavagem de dinheiro e organização criminosa” (Veja de 23.02.11, p. 48). “A Operação Guilhotina foi deflagrada para prender policiais ligados ao crime organizado” (O Globo de 18.02.11, p. 14).

No plano jurídico, no entanto, ele não existe. Juridicamente sempre ficamos indagando: como é esse lúcifer (esse fenômeno diabólico)? Nenhuma lei no Brasil, nunca, definiu o que se entende por crime organizado. Várias leis fazem referência ao crime organizado ou às organizações criminosas (lei do crime organizado, lei de lavagem de capitais, lei das drogas etc.), mas nenhuma trouxe qualquer tipo de definição.

Conclusão: um dos maiores exemplos de autoritarismo penal, portanto, consiste em o juiz valer-se desse “fantasma jurídico” (crime organizado ou organização criminosa) para tolher qualquer tipo de direito ou garantia fundamental dos suspeitos, indiciados, acusados ou condenados. Juridicamente os juízes estão proibidos de determinar qualquer tipo de consequência penal ou processual com base nesse “fantasma jurídico”.

Na praxis forense a violação dessa proibição tornou-se uma constante. Isso comprova o quanto o autoritarismo penal vem penetrando na nossa ordem jurídica.

Diante da inexistência de parâmetros legais, cada juiz pinta o diabo (jurídico) como lhe agrada. A 6ª Turma do STJ, no HC 189.979 (de relatoria do ministro Og Fernandes), acaba de rabiscar mais uma noção da (juridicamente) fantasmagórica organização criminosa (mais detalhes logo abaixo). Serviria essa “pintura”, dada pela 6ª Turma do STJ, de padrão para o legislador?

O conceito de crime organizado (ou de organização criminosa) talvez seja hoje no Brasil o melhor exemplo de quanto o Direito, muitas vezes, é virado de ponta-cabeça. Antigamente aprendíamos que o legislador define a figura criminosa e o juiz a aplica. Como o legislador nada definiu (sobre as organizações criminosas), cada juiz vai inventando seu fantasmagórico arquétipo (modelo, protótipo).

Processo invertido. Juízes legislando. Os juízes é que estão criando o conteúdo demoníaco do crime organizado. Cada um inventa seu conceito. E o princípio da legalidade, que expressa um mundo de garantias, desde o tempo do Iluminismo?

Isso vale para o Direito Penal liberal, para o Direito Penal do cidadão. Aqui no âmbito do Direito Penal do inimigo inverte-se tudo, viola-se tudo, rasga-se tudo (a Constituição, os Tratados internacionais). Os direitos e as garantias ficam suspensos. Porque é tempo dos autoritarismos. O povo, com medo, pede repressão, a mídia ecoa, o legislador faz menção ao satã (ou ao fantasma) e os juízes então (anomalamente) se encarregam de descrevê-lo.

A criminologia (desde os tempos da lei seca nos Estados Unidos, desde Merton, Cressey e tantos outros) bem que tentou revelar as características do fenômeno. Não conseguiu. Alguns legisladores (ao redor do planeta, sobretudo na Itália) também tentaram fazer alguma coisa. Mas nada conseguiram de sólido. Diante da impossibilidade de definir o diabo, os juízes vão dando os seus contornos conforme a imagem de cada um.

O problema é cada juiz tem seu modelo de diabo na cabeça. Logo, na medida em que eles assumem a função (inconstitucional, claro) de definir o crime organizado, acabamos por não avançar muito. Cada um entende o fenômeno da sua maneira. Dentro de pouco tempo vamos ter mais de 10 mil definições distintas. A verdade é que a segurança e o Estado de Direito se evaporariam (caso cada juiz pudesse desempenhar essa função).

O legislador penal brasileiro nunca se atreveu a descrever esse ente endemoninhado (que perturba as nossas cabeças). A primeira lei no Brasil que cuidou do crime organizado foi a 9.034/1995. A legislação penal brasileira vem fazendo referência ao crime organizado e às organizações criminosas, portanto, desde 1995. Mas até hoje, repita-se, nunca definiu o que se entende por isso.

Dentro do Direito Penal brasileiro, em consequência, o conceito de organização criminosa é (juridicamente falando) um verdadeiro “fantasma” (que ronda as cabeças do inconsciente popular, da mídia, do legislador, dos operadores jurídicos e dos autores de ficção).

Como o Direito Penal, pelos seus drásticos danos contra bens jurídicos muito relevantes, não pode admitir definições vagas (completamente vagas) (é nisso que reside a garantia da legalidade), não resta outra conclusão: só o autoritarismo (que acompanha o populismo penal) explica o uso massivo (pela jurisprudência) do “fantasma” do crime organizado (ou da organização criminosa).

Para o Direito Penal autoritário, como se sabe, quanto mais vagos os conceitos mais apropriados eles são para “permitir” a “ilegítima” invasão na vida e na liberdade das pessoas, violando seus direitos e garantias fundamentais.

Quem, com toda contundência e clarividência, denunciou a vacuidade (o vazio) do conceito de crime organizado foi Zaffaroni.[1] Os conceitos vagos, em Direito Penal, violam o princípio da legalidade: “O transporte de uma categoria frustrada ao campo da lei penal não é mais que uma criminalização que apela a uma ideia difusa, indefinida, carente de limites certos e, por fim, uma lesão ao princípio da legalidade — isto é, à primeira e fundamental característica do Direito Penal liberal ou de garantias”.

Ainda que desde a lógica científica (lógica do Direito Penal garantista) o fracasso da categorização (o fracasso da tentativa de conceituação do crime organizado) devesse determinar que a mesma não passasse de uma tentativa no campo criminológico, a lógica política (a lógica do autoritarismo) opera de outra maneira e, por fim, o crime organizado fez sua entrada na legislação penal (no Brasil, em 1995), com a previsível consequencia de introdução de elementos de Direito Penal autoritários.

Mas para que serviria fazer menção numa lei a um conceito vago e indeterminado? Zaffaroni responde[2]: “O conceito fracassado em criminologia foi levado à legislação para permitir medidas penais e processuais penais extraordinárias e incompatíveis com as garantias liberais.” Em outras palavras: os conceitos vagos (“fantasmagóricos”), justamente porque são hiperabrangentes, servem para o cometimento de todo tipo de arbitrariedade.

Vejamos uma delas:

Diz o parágrafo 4o, do artigo 34, da lei de drogas (Lei 11.343/2006) que “Nos delitos definidos no caput e no parágrafo 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.”

Em síntese: se o sujeito faz parte de uma “organização criminosa” não pode se beneficiar da redução de pena contemplada no dispositivo legal. Mas o que se entende por organização criminosa? A lei brasileira nunca deixou isso claro. Já que o legislador não se encarregou do tema, os juízes (inconstitucional e inconvencionalmente) estão assumindo a tarefa. Usurpando funções do legislador.

A 6ª Turma do STJ, nesse caminho, no HC 189.979, fixou o entendimento de que aquele que figura como “mula de tráfico”, transportando grande quantidade de droga, mediante remuneração e com despesas pagas, integra organização criminosa.

Onde está escrito isso na lei? Em nenhum lugar. Então o juiz (no caso, o ministro) está legislando? Sim. E Montesquieu (aquele filósofo que falava em divisão de poderes) está se remoendo em sua tumba? Certamente. E o Estado de Direito? Atropela-se. E o Iluminismo? Mera filosofia. Está fora do contexto autoritário brasileiro.

O julgado foi relatado pelo ministro Og Fernandes que negou o pedido do writ. A defesa pretendia fazer incidir a causa de diminuição de pena prevista no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas ao argumento de que o réu era primário, de bons antecedentes e não integrava organização criminosa.

Ocorre que ele foi surpreendido tentando embarcar para a Holanda com 960 gramas de cocaína em 83 cápsulas ingeridas, fato que para o ministro não pode ser desconsiderado, em razão da quantidade da droga que traduz o elevado nível de culpabilidade do paciente: “É de ver, por fim, que a mens legis da causa de diminuição de pena seria alcançar aqueles pequenos traficantes, circunstância diversa da vivenciada nos autos, dada a apreensão de expressiva quantidade de entorpecente, com alto poder destrutivo” (STJ, HC 189.979).

O réu pretendia ter diminuída sua pena em 1/6 a 2/3, alegando que era primário, de bons antecedentes e que não se dedicava às atividades criminosas nem integrava organização criminosa — requisitos exigidos pelo parágrafo 4º, do artigo 33, da lei. A tese não foi aceita pelo STJ porque seu envolvimento com atividades criminosas estava configurado pelo fato de sua viagem à Amsterdã ter sido “patrocinada” pela organização, para a qual ele transportava a droga.

Como se vê, o STJ acaba de usarpar (mais uma vez) as funções do legislador. Isso é absolutamente inconstitucional e inconvencional. Fica fácil o leitor perceber que no âmbito do Direito Penal do inimigo (direito sem garantias) o fantasma do crime organizado (e das organizações criminosas) continua rendendo muitos frutos.

Até quando o princípio da legalidade, previsto na Constituição e nos Tratados internacionais, continuará reduzido a pó em alguns momentos? Para contornar a questão, alguns invocam o Tratado de Palermo. Isso é incorreto. Nenhum tratado internacional pode definir crimes para reger o direito aplicado dentro do Brasil. Vamos aprofundar esse tema.

Observe-se, de outro lado, que o tema já está na pauta do STF (1ª Turma). No HC 96.007 já existem dois votos (ministros Marco Aurélio e Dias Toffoli) que negam a existência jurídica das organizações criminosas no Brasil. Vamos ver como vai acabar esse julgamento. Por Luiz Flávio Gomes - doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e mestre em Direito Penal pela USP. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). É autor do Blog do Professor Luiz Flávio Gomes.

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[1] Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crime organizado: uma categorização frustrada. Discursos Sediciosos: crime, Direito e sociedade, ano I, n. 1, Rio de Janeiro: Relume Dumará: Instituto Carioca de Criminologia, p. 45-68, 1996.
[2] Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crime organizado: uma categorização frustrada. Discursos Sediciosos: crime, Direito e sociedade, ano I, n. 1, Rio de Janeiro: Relume Dumará: Instituto Carioca de Criminologia, p. 45-68, 1996.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

LEI SOBRE CRIMES TRIBUTÁRIOS TRARÁ MUITAS AÇÕES

O tratamento ao crime tributário no Brasil mudou abruptamente em março, quando entrou em vigor a Lei 12.382, de 2011. A norma prevê que a suspensão da pretensão punitiva referente aos delitos tributários somente ocorrerá se o pedido de parcelamento do débito for feito antes do recebimento da denúncia, ou seja, da efetiva instauração do processo penal. A mudança é muito significativa, já que, desde 2003, um empresário que optasse pela quitação parcelada de sua dívida com o Fisco seria prontamente beneficiado com a paralisação da ação penal, pouco importando a sua fase, mesmo que uma eventual sentença condenatória já estivesse em grau de recurso. E, com o pagamento da última parcela, ocorria a extinção da punibilidade.

No mérito, a nova legislação é muito mais rígida, porque criou um marco temporal que até então não existia. Assim, o recebimento da denúncia passa a ser o divisor de águas, delimitando o momento em que o parcelamento impedirá o desenrolar do processo criminal. Certamente, irá prejudicar empresários que se empenham em quitar suas dívidas, pois, muitas vezes, o acusado é obrigado a aguardar por um programa de parcelamento viável, que pode surgir apenas depois do recebimento da denúncia. Neste caso, o início do pagamento parcelado não trará nenhuma consequência benéfica no curso da ação penal, o que, além de injusto, é um desestímulo ao próprio parcelamento. Por ser uma lei penal mais rigorosa, não poderá retroagir no tempo ou mesmo ser aplicada para casos em andamento, sendo válida somente para débitos tributários constituídos depois da data de sua vigência.

Mas, muito além do debate acerca de sua pertinência, é no plano formal que a Lei 12.382 revela sua inconstitucionalidade, graças à sua elaboração em flagrante ofensa às normas do processo legislativo. O histórico de sua criação explica as falhas técnicas. No começo do ano, o governo desejava aprovar com urgência uma lei fixando o valor do salário mínimo, mas precisava aguardar o andamento das demais votações em pauta na Câmara. Por força de regras regimentais, leis que não podem ser tratadas por medidas provisórias, como aquelas que disciplinam uma matéria de ordem penal, têm prioridade na votação. Então, para obter a preferência na pauta parlamentar, a matéria penal tributária foi inserida no texto de lei sobre o salário mínimo, fazendo com que o heterogêneo projeto fosse votado em caráter preferencial e aprovado num piscar de olhos, entrando em vigor dois dias úteis após a data de sua publicação.

Concebida para furar a fila de votações, a Lei 12.382 gerou um verdadeiro Frankenstein legislativo, tratando de assuntos totalmente distintos, como o valor do salário mínimo e o tratamento processual-penal aplicável aos crimes tributários. Em seus cinco artigos iniciais, trata exclusivamente de temas ligados ao salário mínimo, para, repentinamente, no sexto e derradeiro artigo, mudar radicalmente de assunto e adentrar na seara do direito penal. Não há dúvidas de que esta confusão de temas ofendeu a Lei Complementar 95, de 1998, que dispõe sobre a elaboração e redação das leis e prevê, em seu artigo 7º, que cada norma "tratará de um único objeto" e "não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão". Vale lembrar que no nosso ordenamento jurídico uma lei complementar tem status de norma constitucional, portanto, uma lei federal contendo diferentes objetos ou matéria estranha é inconstitucional.

A ilegalidade na elaboração da Lei 12.382 já foi objeto de protestos infrutíferos quando de sua votação na Câmara, mas pode ser reconhecida por meio de ação direta de inconstitucionalidade. Em complemento, a competência para declarar a ofensa constitucional não é exclusiva do Supremo Tribunal Federal. Ao julgar um caso concreto de crime tributário no qual o pedido de parcelamento tenha ocorrido depois do recebimento da denúncia, qualquer juiz ou tribunal poderá apontar a inconstitucionalidade da lei e suspender a ação penal.

Não se pode falar em crime tributário no Brasil sem reconhecer a existência, ao lado da figura do costumeiro sonegador, de uma enorme parcela de réus que, na verdade, são vítimas de um sistema tributário tão intrincado quanto perverso. Nesse complexo cenário, é censurável a edição de uma norma que repentinamente deixa de distinguir e tratar adequadamente o acusado que se propõe a parcelar e pagar seus débitos. Ainda pior é constatar que essa mudança legislativa foi trazida de carona em uma norma absolutamente distinta, em patente inconstitucionalidade — o que, inevitavelmente, trará uma enxurrada de contestações judiciais e muita insegurança jurídica. Por José Luis Oliveira Lima (advogado criminalista) e Rodrigo Dall'Acqua (advogado criminalista, sócio do Oliveira Lima, Hungria, Dall’Acqua e Furrier Advogados) – Fonte: Jornal Valor Econômico, ed. do dia 08/04/11.

terça-feira, 5 de abril de 2011

STJ DECIDE QUE OPERAÇÃO CASTELO DE AREIA FOI ILEGAL

Denúncias anônimas não podem servir de base exclusiva para que a Justiça autorize a quebra de sigilo de dados de qualquer espécie. Com esse fundamento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, nesta terça-feira (5/4), que todas as provas obtidas na operação Castelo de Areia a partir da quebra generalizada do sigilo de dados telefônicos são ilegais.

Na prática, a operação ruiu, tal qual um castelo de areia. Isso porque as provas do processo se originaram a partir da autorização da Justiça que deu senhas para policiais federais acessarem bancos de dados de empresas telefônicas, o que foi considerado irregular.

A decisão foi tomada por três votos a um. A ministra Maria Thereza de Assis Moura e os desembargadores convocados Celso Limongi e Haroldo Rodrigues entenderam que as provas que embasaram a denúncia que nasceu da operação são nulas. Apenas o ministro Og Fernandes considerou a operação legal.

A operação Castelo de Areia foi deflagrada em março de 2009 para investigar crimes financeiros e desvio de verbas públicas que envolviam diretores de empreiteiras e partidos políticos. Em dezembro do mesmo ano, o juiz Fausto Martin de Sanctis acolheu parte da denúncia do Ministério Público contra três executivos da Camargo Corrêa.

As investigações da operação estavam paradas desde janeiro de 2010, quando a Ação Penal contra os diretores foi suspensa por liminar do então presidente do STJ, ministro Cesar Asfor Rocha. Nesta terça-feira, três dos quatro ministros que compõem a 6ª Turma do STJ acolheram os dois pedidos de Habeas Corpus ajuizados pela defesa dos acusados, sinalizando que Asfor Rocha tomou a decisão correta.

O julgamento foi retomado com o voto do desembargador convocado Celso Limongi, que havia pedido vista do recurso no último dia 15 de março. Para Limongi, a delação anônima não serve, por si só, para a violação de qualquer garantia fundamental dos cidadãos, como é o caso do sigilo de dados telefônicos.

O desembargador considerou a quebra do sigilo determinada pela Justiça Federal de São Paulo com o fornecimento de senhas para policiais federais acessarem os dados de quaisquer assinantes das companhias telefônicas “destituída de fundamentação”. De acordo com Celso Limongi, uma denúncia anônima deve servir para que as autoridades policiais busquem indícios do crime relatado anonimamente e, só no caso de os encontrarem, pedir a quebra de sigilo para a Justiça.

Limongi relatou que diante do pedido de fornecimento de senhas sem fundamento feito pela Polícia Federal ao juiz substituto da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, que substituía o titular Fausto Martins De Sanctis na ocasião — os demais atos, como as interceptações telefônicas, também considerados irregulares, foram determinadas pelo próprio De Sanctis —, o Ministério Público questionou a legalidade da medida.

A PF respondeu, então, que o pedido foi feito de forma genérica de forma proposital, para que não houvesse vazamento de informações. O desembargador considerou surpreendente a resposta da PF e a anuência do Ministério Público. “Pior ainda é o acolhimento [pelo juiz] do pedido completamente desfundamentado”, afirmou. “O Judiciário não é mero assistente do desenrolar do processo”, disse Limongi.

"A abrangência do deferimento concedendo, indiscriminadamente, senhas foi uma autorização geral, em branco, servindo para a quebra de sigilo de qualquer número de telefone, dando ensejo a verdadeira devassa na vida dos suspeitos e de qualquer pessoa", afirmou o desembargador. Para Limongi, "se a Polícia desrespeita a norma e o Ministério Público passa por cima da irregularidade, não pode, nem deve, o Judiciário conceder beneplácitos a violações da lei".

Em seu voto, Celso Limongi também refutou o argumento do MP de que o pedido de quebra dos sigilos não foi embasado exclusivamente na denúncia anônima, mas também em uma delação premiada feita meses antes da denúncia apócrifa, em outro processo. De acordo com o desembargador convocado, ao fornecer as senhas para os policiais federais e, assim, quebrar o sigilo de dados dos clientes de companhias telefônicas, o juiz não fez qualquer menção à delação premiada.

“O que não está nos autos não está no mundo”, afirmou Limongi. Para ele, ao omitir dos autos a delação premiada, as autoridades não agiram com a ética e a lealdade que se espera do Poder Público e dificultaram “propositalmente o exercício do direito de defesa” dos investigados.

Voto vencido

Único a votar pela validade das provas, o ministro Og Fernandes, sustentou que a operação não teve início com base exclusivamente em denúncia anônima. De acordo com o ministro, depois da denúncia, houve diligências preliminares feitas por autoridades policiais antes da instauração do procedimento de investigação e dos consequentes pedidos de escutas e de quebra de sigilos dos investigados. “Não tenho dúvidas da higidez das investigações. A autoridade policial efetivamente efetuou diligências preliminares como preceituam este tribunal e o Supremo Tribunal Federal”, afirmou. Segundo Fernandes, além das diligências, a delação premiada feita meses antes da denúncia anônima, em outro processo, também embasou os pedidos.

Og Fernandes disse que a jurisprudência dos tribunais têm se sedimentado no sentido de que podem ser abertas ações penais a partir de denúncia anônima desde que sejam feitas diligências preliminares pela autoridade policial, com a devida cautela e prudência, antes da abertura do inquérito. De acordo ele, isso foi feito.

O ministro não considerou irregular o fornecimento de senhas para policiais federais acessarem bancos de dados de empresas telefônicas e obter dados relativos ao cadastro de assinantes e usuários. Ele ressaltou que o acesso a dados cadastrais não pode ser confundido com a quebra de sigilo das comunicações e que a autorização foi delimitada pelo juiz, que autorizou o acesso por 30 dias somente por determinados policiais.

Segundo ele, não há na decisão judicial que originou o acesso aos dados cadastrais a mácula apontada pelos defensores. O acesso a informações cadastrais, na visão do ministro, não é medida invasiva que deve ser levada a efeito somente depois de outras investigações.

Outro argumento da defesa refutado por Og Fernandes foi o de que a sonegação do acesso de provas produzidas nos autos causou prejuízo ao devido processo legal. O ministro ressaltou que não havia dúvidas de que, de fato, foi omitido da defesa dos acusados provas importantes que já eram de conhecimento dos investigadores quando do recebimento da denúncia.

Mas, de acordo com Fernandes, uma liminar concedida pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que deu aos advogados o pleno acesso a essas provas, recolocou o processo nos eixos antes que pudesse causar efetivo prejuízo à defesa: “As irregularidades foram corrigidas em tempo oportuno”.

Provas nulas

Em setembro do ano passado, a relatora do processo na 6ª Turma, ministra Maria Thereza, considerou que a operação começou de forma ilegal e que, por isso, as provas colhidas deveriam ser consideradas nulas. Nesta terça-feira, os dois desembargadores convocados acompanharam seu entendimento.

Em um longo e minucioso voto, a ministra admitiu parcialmente os pedidos para anular as quebras de sigilo e as interceptações telefônicas concedidas pela Justiça Federal paulista e os demais procedimentos delas decorrentes. Segundo a ministra, a aceitação da denúncia anônima não pode alicerçar medida de grande vulto.

Na sessão desta terça, Maria Thereza lembrou que considerou a quebra de sigilo indiscriminada sem fundamento e disse que a delação premiada de um doleiro que embasou os primeiros pedidos de quebra de sigilos e de escutas telefônicas não foi trazida aos autos no momento adequado. Isso feriria o direito à ampla defesa.

Maria Thereza aproveitou para responder a um memorial entregue a ela pelo Ministério Público no qual se afirmava que seu voto estava equivocado. Segundo ela, isso só pode ter sido escrito por alguém que não fez a devida leitura de seu voto.

A ministra, em seu voto de setembro, acolheu argumentos da defesa, de que toda a investigação que culminou com a operação teve início exclusivamente em denúncia anônima, “dando conta de que uma pessoa de nome Kurt Pickel estaria se dedicando à atividade de compra e venda de dólares no mercado paralelo, sem qualquer respaldo legal para tanto. Tratar-se-ia de verdadeiro ‘doleiro’, atuando no mercado negro de moedas estrangeiras e, como tal, envolvido na prática de delitos contra o sistema financeiro nacional e, provavelmente, de lavagem de dinheiro”.

Com base em tal informação, a autoridade policial, para iniciar a investigação, solicitou ao juiz o fornecimento de senhas a policiais federais para acessar os bancos de dados das empresas telefônicas, o que foi deferido.

A defesa sustentava ainda que a autoridade policial, após um ano e dois meses de consultas a bancos de dados para acessar dados pessoais de Pickel e de terceiros desconhecidos, e "sem apresentar qualquer elemento informativo idôneo colhido por meio de investigação realizada pela Polícia Federal", requereu a interceptação telefônica de Pickel afirmando genericamente que através de investigações preliminares "foi obtida a informação de que ele prestaria seus serviços ilegais a construtoras de grande porte, como, por exemplo, a construtora Camargo Corrêa".

Os pedidos da defesa foram acolhidos. De acordo com o advogado da Camargo Corrêa, Celso Vilardi, a operação Castelo de Areia foi uma “sucessão de ilegalidades” e a decisão do STJ reforça a tese já pacificada nos tribunais superiores de que “os fins não podem justificar os meios”. “Antes da quebra do sigilo de dados não existia inquérito policial, nem qualquer investigação preliminar. O que havia era apenas uma carta anônima que não foi sequer trazida aos autos”, completou Vilardi ao sair do julgamento da 6ª Turma. Por Rodrigo Haidar. Fonte - Conjur. HC 137.349 HC 159.159